Consciência digital - ainda somos os mesmos?

Recentemente, um comercial de uma conhecida marca de automóveis causou grande frisson ao recriar digitalmente uma das maiores cantoras brasileiras, Elis Regina, falecida em 1982, que não só dirige um carro antigo da marca como também faz um dueto com a filha.

Questões jurídicas, éticas e até políticas levaram o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) a instaurar um processo ético para investigar o anúncio. O CONAR planeja analisar se os herdeiros poderiam autorizar o uso da imagem de uma pessoa falecida para uma peça criada por meio de Inteligência Artificial (IA), em cenas das quais ela não participou em momento algum de sua vida.

É importante lembrar que até o momento não temos regramento definido sobre uso da IA no Brasil. Encontra-se em discussão no Senado o PL 2338/2023, que pretende aprovar o chamado Marco Civil da IA. Ademais, questões normativas com relação ao direito de uso de imagem, que são personalíssimos, trazem mais lenha ao debate, no sentido de se saber se este direito é transmissível por herança.

A civilização em que vivemos, na qual as tecnologias de informação e comunicação têm um papel vital e crescente, requer a construção de uma “nova ética” focada no “princípio de responsabilidade”, pautada principalmente na assunção de risco e suas consequências. É tudo muito dinâmico e rápido, pois a cada minuto surge ou pode estar surgindo uma nova tecnologia.

O futuro já chegou, não há tempo a perder. As tecnologias inteligentes já fazem parte do nosso dia a dia. E o profissional da área de compliance precisa e deve aprender usar essas soluções ao seu favor, não restam dúvidas dos seus benefícios. 

Esse profissional também deve conseguir impor limites para que estas tecnologias sejam efetivamente empregadas para o serviço e bem-estar da humanidade, respeitando sempre os direitos fundamentais do homem e a justiça. Não é à toa que a privacidade e a proteção de dados fazem parte do rol dos direitos fundamentais de nossa Constituição.

Toda nova tecnologia dá um passo adiante na história da civilização humana. E os seus inventores as elogiam, enfatizando seus benefícios, suas vantagens econômicas. Mas se faz necessário também construir uma consciência crítica, responsável e ética, baseada nos riscos que estas inovações e sua utilização poderão causar à humanidade antes que os danos se manifestem de maneira irreversível, ou caros demais para consertar. A ética, principalmente, tem um grande papel nessa construção.

A ética digital precisa ser construída de forma responsável e coletiva, através de uma análise e compreensão dos riscos envolvidos. Adotar a ética digital requer mudança de hábitos. Como dizia o saudoso Giovanni Buttarelli, temos que trazer de volta a humanidade ao digital. Não somos perfeitos, mas podemos nos esforçar para sermos justos e corretos, isto será refletido na tecnologia e consequentemente em nossa legislação, melhorando a nossa sociedade.

“A tecnologia não tem consciência própria. Se ela vai se tornar uma força para o bem ou para o mal depende do homem”, disse John F. Kennedy em seu emblemático discurso de 1962.

Naquela época, o homem havia escolhido ir para a lua, agora escolhemos ir além, e atrás de nós está um passado que não poderemos retornar. Precisamos de profissionais capazes de operar as novas tecnologias, mas, sobretudo, precisamos de profissionais que saibam ser a sua boa consciência.

Um Canal de Denúncias associado a um Sistema de Ouvidoria digital, que combine as melhores práticas de governança com a mais recente tecnologia, inclusive a IA, pode ser um excelente e moderno framework na construção e promoção de uma cultura ética, crítica e responsável nas organizações, ajudando a resolver dilemas e esclarecer situações que dificilmente a alta direção teria acesso direto, e, dessa forma, evitando ou minimizando riscos.

E como diz a música do comercial sobre o qual iniciamos este texto, “ainda somos os mesmos”, mas o “novo sempre vem”, e que esse seja sempre ético.

Artigo escrito por Adriana S. L. Esper, Managing Officer do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial, parceiro do Ouvidor Digital.